segunda-feira, maio 15, 2017

Festival Eurovisão da Canção 2017

Desta vez é um comentário a posteriori, até porque assim se torna mais fácil fazer prognósticos.

Comecemos pelo concurso interno português das canções candidatas à representação do nosso país. De todas elas só duas me chamaram verdadeiramente a atenção.

A primeira música, composta pela Luísa Sobral e interpretada pelo "excêntrico" (?) Salvador Sobral, "Amar pelos Dois", não é uma música festivaleira. É antes uma balada romantico-melancólica, com arranjos de bossa nova.


    Se um dia alguém
    Perguntar por mim
    Diz que vivi
    Para te amar

    Antes de ti
    Só existi
    Cansado e sem nada p’ra dar

    Meu bem
    Ouve as minhas preces
    Peço que regresses
    Que me voltes a querer

    Eu sei
    Que não se ama sozinho
    Talvez devagarinho
    Possas voltar a aprender

    Se o teu coração
    Não quiser ceder
    Não sentir paixão
    Não quiser sofrer

    Sem fazer planos
    Do que virá depois
    O meu coração
    Pode amar pelos dois

É uma canção simples, efetiva, com uma mensagem também ela simples e efetiva de um amor, possivelmente não correspondido, que alguém se dispõe a manter e a sofrer só para que ele não se vá.

Na conferência de imprensa que ocorreu depois do festival, um jornalista conotado com uma revista LGBT fez notar que a música "Amar pelos Dois" não tem pronomes de género, podendo ser cantada por um homem ou por uma mulher, dirigindo-se a um homem ou uma mulher. Luísa Sobral disse que isso não foi propositado. Disse também que quando escreveu e compôs a música para o seu irmão fez de forma a que ela também a pudesse cantar e, talvez por isso, o género não apareça.

Outra que tem uma melodia interessante e uma voz ainda mais interessante (a da cantora Kika Cardoso) é "Nova Glória" dos Viva La Diva, composta por Nuno Gonçalves. Embora original, os contra-tenores (Luís Peças e João Paulo Ferreira) não me convenceram. A parte final, excessivamente gritada, poderia ser melhorada.


    Sou e o que fui passou
    delirei com amor
    Mil memórias

    Ser ou não quis parecer
    algo por dizer,uma história

    Nova Glória e sonhos nunca cumpridos, nunca ouvidos.

    Quero mais, pois dá-me

    Amor,
    tão longe a dor,
    um brinde à cor,
    vejo ao longe o mar,
    juro-me não falhar…

    Sim, decidir por ti
    quis seguir, senti a vitória.

    Quero mais pois dá-me

    Refrão

    Grito intenso
    um comum bom senso
    rezo o mesmo terço, quero mais
    pois dá-me

    Refrão

Para além da música portuguesa interpretada por Salvador Sobral, poucas se destacaram na grande final do Festival Eurovisão.

Uma delas é a música italiana, cantada por Francesco Gabbani, intitulada "Occidentali's Karma". Trata-se de uma música "festivaleira", moderna, bem feita, bem interpretada e bem letrada. Faz-me apenas confusão que "quase todos" os italianos cantem com aquela voz áspera... assim de repente, a voz de Francesco Gabbani faz lembrar Eros Ramazzotti mas poderia também dizer Toto Cutugno. Na letra que a seguir transcrevo, as partes a itálico não fazem parte da versão Festival Eurovisão da música. Compreende-se que a primeira parte obliterada destina-se a encurtar um andamento de igual cadência melódica e a segunda talvez tenha sido rasurada pela referência à marca Chanel.


    Essere o dover essere
    Il dubbio amletico
    Contemporaneo come l’uomo del neolitico
        Nella tua gabbia 2×3 mettiti comodo
        Intellettuali nei caffè
        Internettologi
        Soci onorari al gruppo dei selfisti anonimi
    L’intelligenza è démodé
    Risposte facili
    Dilemmi inutili

    A A A cercasi (cerca, sì)
    storie dal gran finale,
    Sperasi (spera, sì)
    Comunque vada, panta rhei*
    And “Singing in the rain”

    Lezioni di Nirvana
    C’è il Buddha in fila indiana
    Per tutti un’ora d’aria, di gloria (ale!)
    La folla grida un mantra
    L’evoluzione inciampa
    La scimmia nuda balla
    Occidentali’s karma
    Occidentali’s karma
    La scimmia nuda balla
    Occidentali’s karma

        Piovono gocce di Chanel
        Su corpi asettici
        Mettiti in salvo dall’odore dei tuoi simili
        Tutti tuttologi col web
        Coca dei popoli
        Oppio dei poveri

    A A A cercasi (cerca sì)
    umanità virtuale
    Sex appeal (sex appeal)
    Comunque vada, panta rhei*
    And “Singing in the rain”

    Refrão

    Quando la vita si distrae
    Cadono gli uomini
    Occidentali’s karma
    Occidentali’s karma
    La scimmia si rialza
    Namaste**, allez***!

    Refrão

    Omm.

Vejamos agora a tradução para português tendo em conta o seguinte:

* "Panta rhei" é um termo grego, πάντα ῥεῖ no original arcaico, que significa "tudo flui", possivelmente proferida por Heráclito.

** "Namaste" é uma palavra hindu, नमस्ते no original, que significa "olá".

*** "Allez" é uma palavra francesa que significa "vamos".

    Ser ou não ser
    A dúvida de Hamlet
    Contemporâneo como o Homem do Neolítico
        Mantém-te confortável na tua gaiola 2x3
        Intelectuais nos cafés
        A lógica da Internet
        Sócios honorários do clube dos egoístas anónimos
    A inteligência está fora de moda
    Respostas fáceis
    Dilemas inúteis

    Procuram-se grandes finais
    Por eles se espera
    Seja como for, tudo flui
    E "Singing in the Rain"

    Lições do Nirvana
    É o Buda em fila indiana
    Para todos uma hora de divertimento, de glória
    O povo grita um mantra
    A evolução tropeça
    O macaco nu dança
    É o karma ocidental

    Gotas de Chanel caem
    Nos corpos asséticos
    Salva-te do cheiro dos teus semelhantes
    Todos sabem tudo com a Web
    Cocaína das massas
    Ópio dos pobres

    Procura-se
    A humanidade virtual
    Sex appeal
    Seja como for, tudo flui
    E "Serenata à Chuva"

    Quando a vida se distrai
    O Homem cai
    É o karma ocidental
    O macaco volta a ficar de pé
    Olá, vamos!

É uma crítica aberta à sociedade atual, com toda a sua superficialidade, egocentrismo, narcisismo, imediatismo e centrada na Internet.

A referência ao Macaco Nu é invocativa do livro homónimo de Desmond Morris, The Naked Ape: A Zoologist's Study of the Human Animal que olha para a espécie humana e compara-a com os outros animais.

A mensagem que transparece da música é que com o estado atual da sociedade, o Homem "afunda-se" para que o seu lado "Macaco", com todo o comportamento não humano associado, se erga. Ao contrário de muitas críticas que vi, a presença do macaco em palco não é somente um elemento alegórico e despropositado mas antes a invocação desta mensagem.

Depois da canonização dos pastorinhos em Portugal pelo Papa Francisco e o Tetra-Campeonato do Benfica, a vitória do Salvador Sobral, embora justa, foi inesperada. Pelos vistos o Festival da Eurovisão e o público europeu ainda têm salvação. Talvez nestas lides o macaco ainda não ficou de pé e o pensamento do macaco nu ainda governa.





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